Redação no Enem: Não Fique em Cima do Muro

O Enem 2015 foi acusado, por várias pessoas, anônimas e públicas, de fazer uma espécie de doutrinação e apologia ao feminismo e ao marxismo ao inserir uma questão cujo enunciado apresentava uma citação da filósofa francesa Simone de Beauvoir e ao apresentar como tema da proposta de redação a violência contra a mulher no Brasil. Além disso, alguns economistas afirmaram que o exame citou em suas questões objetivas visões de esquerda acerca de temas como a globalização, por exemplo, e deixou de lado pontos de vista de direita.

Tais críticas não são associadas somente a políticos e a economistas que, uma vez ou outra, fazem declarações sobre o Enem por meio de um viés político, já que trata-se de um exame elaborado e realizado pelo governo federal; tais críticas também são feitas por pessoas que acreditam que a escola deve ser imparcial e neutra ao ensinar seus alunos, como as que formaram a associação Escola Sem Partido.

Com todo o respeito, discordamos de tal postura, já que acreditamos que toda palavra e, assim, todo e qualquer enunciado está situado em um emaranhado de vozes, já que formamos as nossas opiniões de acordo com aquilo que lemos, vemos e ouvimos e, portanto, somos seres ideológicos por natureza. Afirma-se como neutro ou ficar em cima do muro em determinado assunto já é uma atitude ideológica; há ideologia até onde parece não haver.

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Sobre tudo e sobre todos, temos opiniões, cristalizadas ou em formação, e opinamos sem perceber, já que até um aceno afirmativo ou negativo com a cabeça configura uma resposta ativa, pois não somos seres passivos e sim ativos que constroem sentidos a todo o momento. Na proposta de redação do Enem, por exemplo, a qual exige a escrita de uma dissertação-argumentativa, uma tese deve ser defendida por meio de argumentos e estratégias argumentativas, ou seja, uma postura deve ser assumida ao invés de adotar uma postura tida como neutra.

Há quem afirmou que o tema da prova de redação do Enem buscou controlar os pensamentos dos candidatos ao tratar da violência contra a mulher, já que os textos devem respeitar os direitos humanos, como se fosse digno de defesa um argumento favorável à violência contra a mulher. Além disso, afirmaram ser um tema de esquerda; quer dizer que os políticos de direita aceitam a violência contra a mulher? Aliás, por que há uma dita doutrinação apenas de esquerda e não de centro ou de direita?

O Enem, por ser um exame de alta relevância e de entrada em universidades federais, exerce uma grande influência nas escolas e gera efeitos positivos e negativos no ensino. Um dos efeitos negativos é o estreitamento do currículo, já que a sua prova de redação exige a tradicional dissertação-argumentativa e muitas escolas insistem em treinar seus alunos a escreverem esse tipo textual, deixando de lado os gêneros discursivos que, por sua vez, refletem a realidade dos usos da língua e da linguagem. Porém, um dos efeitos positivos, principalmente da edição de 2015, foi fazer com que mais de 7 milhões de pessoas refletissem sobre feminismo, machismo e desigualdade de gênero no Brasil.

O Enem e nenhum exame ou vestibular é neutro porque as pessoas não são neutras; o ensino deve contemplar a maior gama de pensamentos possível, seja de qual lado for, a fim de apresentá-los aos alunos e fazer com que eles, cientes de sua criticidade, escolham qual adotar. Não devemos achar que há doutrinação apenas de um lado nem ficarmos em cima do muro, inclusive no momento da escrever a redação.

 


*CAMILA DALLA POZZA PEREIRA é graduada e mestranda em Letras/Português pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Atualmente trabalha na área da Educação exercendo funções relacionadas ao ensino de Língua Portuguesa, Literatura e Redação. Foi corretora de redação em importantes universidades públicas. Além disso, também participou de avaliações e produções de vários materiais didáticos, inclusive prestando serviço ao Ministério da Educação (MEC).

 **Camila é colunista semanal sobre redação do nosso portal. Seus textos são publicados todas as quintas! Também é uma das professoras do Programa de Correção de Redação do infoEnem.

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3 comments
  1. É uma pena que um exame de relevância nacional adote uma postura tão limitada, apesar de ter escolhido um tema relevante desta vez, a banca fez questão de tornar mais restrita a opção para o candidato, ora se já não podia ser neutro, imparcial, justo, agora também não se pôde ser a favor. Isso me lembra a obrigatoriedade do voto, tudo aqui tem que ser imposto, impelido, beirando a ditadura, porque não pode haver meio termo, equilíbrio, tem que ter extremo: ou é esquerdista liberal, ou é direitista conservador.

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