Marielle Franco Presente! Vidas Negras Ausentes!

Por Mariana Santos de Assis 1

Se queremos realmente ter senso crítico, precisamos ser capazes de lidar com as inúmeras informações recebidas diariamente, de modo a garantir o máximo aproveitamento desses saberes para nossa formação não apenas como estudantes, mas também como cidadãos e, principalmente, seres humanos. Por isso precisamos estar atentos e atentas para as polêmicas que tomam conta das mídias mundiais, pois, podem representar, ao mesmo tempo, uma fonte inesgotável de conhecimento e um meio de manipulação e sujeição de nossas opiniões a ideias mais convenientes para grupos dominantes.

A execução da vereadora Marielle Franco abriu caminho para uma série de debates relacionados a sua trajetória de luta, a sua origem social e sobretudo racial. Pensando em nossa formação como cidadãos brasileiros não podemos ignorar o fato de que esse acontecimento encerra em si alguns dos piores aspectos do contexto político atual. No momento em que nossa jovem e frágil democracia está sofrendo os piores ataques desde o fim da Ditadura Militar, a morte de um símbolo da resistência popular não pode ser vista como mais uma tragédia decorrente da violência cada vez maior nas cidades brasileiras.

Não podemos encarar a execução sumária de alguém que representa um risco real ao autoritarismo, desmandos e impunidade vigentes nas instâncias governamentais como uma tragédia cotidiana. Acima de tudo, não podemos aceitar que a solução para o ocorrido seja apenas o suposto combate à violência por meio da retirada de direitos da população pobre e negra, representado pela intervenção militar no Rio de Janeiro, a qual, sabemos bem, cria um estado de sítio nas comunidades e favelas. Além disso, a morte de Marielle foi mais um golpe à democracia, pois quase 50 mil votos foram jogados no lixo e a vontade do povo novamente foi desconsiderada para que as elites mantivessem o controle do país.

No entanto, como já foi dito, o conhecimento não pode servir apenas para garantir uma boa formação cidadã, deve também nos tornar seres humanos melhores. Conhecer e compreender a política nacional e as diversas formas de opressão que tornam insustentável a vida de grande parte da população deve servir para nos tornarmos mais empáticos, para direcionar nossa luta à garantia dos Direitos Humanos para todos e principalmente todas.

No caso de Marielle, o descuido e a brutalidade do ato evidenciam um dos aspectos mais terríveis da sociedade contemporânea, o qual, assim como o maior crime da humanidade – a escravidão – ainda não é enfrentado com a revolta que deveria inspirar: o Genocídio da População Negra2. Assassinar lideranças de esquerda é um expediente comum em momentos de autoritarismo político, como o que estamos vivendo atualmente, porém, mesmo em governos totalitários, há um cuidado para amenizar o impacto social e conter a reação das massas diante desses atos. No entanto, Marielle foi executada em praça pública, com requintes de crueldade, teve seu rosto desfigurado e a reação de muitos foi tentar justificar tamanha brutalidade com mentiras sobre o comportamento e a vida pessoal da vereadora. Tal postura não se deve apenas à certeza da impunidade, mas também contava com a já conhecida indiferença da população diante do sofrimento e morte de pessoas negras.

Mais do que um risco à política elitista, baseada no medo e na precarização das condições de vida da população pobre, Marielle era uma mulher negra que resolveu sair do lugar social definido para pessoas iguais a ela – pobre, presa ou morta3 – e lutar por direitos iguais para seu povo. Ela representou a possibilidade real de que negros e negras finalmente fossem vistos e vistas como seres humanos merecedores de dignidade e direitos como qualquer outro, foi um símbolo que inspiraria mais da metade da população brasileira a não aceitar mais ser tratada como “minoria”.

Portanto, lamentavelmente, podemos dizer que o fato de ser uma mulher negra levou seus algozes a acreditarem que sua morte não teria o poder de mobilizar a população a buscar justiça, seria vista apenas como mais um número. Isso porque nossa sociedade se acostumou a testemunhar com total indiferença o sofrimento negro, somos formados para naturalizar o assassinato e a tortura de homens, mulheres e crianças negras.

A desumanização da população negra é a maior herança da escravidão e o principal alicerce de toda a ordem burguesa, uma vez que mantém grande parte da população em uma condição de subalternidade justificada por ideias inspiradas em grandes correntes científicas, como a eugenia4 e o darwinismo social5, as quais embasaram regimes como o nazismo na Alemanha e o apartheid racial6 nos EUA e na África do Sul.

A história de violência e segregação, contada por tais posturas racistas, deveria nos fazer lutar de forma intransigente pela garantia de direitos e reparação para a população negra, com o mesmo horror com que nos levantamos contra o Holocausto. No entanto, seguimos tentando justificar o injustificável, fingindo não ver que, ao nos calarmos ou pior, tentarmos justificar o extermínio da população negra, estamos acatando e reproduzindo o mesmo discurso racista que levou à criação das Leis Jim Crow7, da Ku Klux Klan8 e de todos os regimes políticos totalitários baseados no discurso de supremacia branca.
 


1. Mariana Santos de Assis é licenciada em Letras, Mestra em Linguística Aplicada e Doutoranda em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e foi convidada por Camila Dalla Pozza a escrever o artigo de hoje. O infoEnem agradece muito a participação de Mariana na coluna desta quinta-feira.


2. Leia mais em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/atlas-da-violencia-2017-negros-e-jovens-sao-as-maiores-vitimas


3. Parafraseando a letra da música “Negro Drama”, do grupo de rap Racionais Mc’s.


4. Teoria que busca produzir uma seleção entre seres humanos, baseada em leis genéticas. Leia mais em: http://www.bbc.com/portuguese/internacional-39625619.


5. Tentativa de utilizar a teoria da Evolução de Charles Darwin para compreender as sociedades humanas, pautada na ideia de que algumas sociedades eram superiores a outras em consequência de uma seleção natural. Leia mais em: https://brasilescola.uol.com.br/historiag/darwinismo-social.htm.


6. Regime de segregação racial por meio da privação de direitos e liberdades de sujeitos negros.


7. Leis segregacionistas promulgadas nos estados do sul dos EUA, as quais institucionalizaram a segregação racial, criando guetos, proibindo o voto e mesmo a presença de pessoas negras em espaços públicos, dentre outras privações de direitos.


8. Leia mais sobre a criação dessa instituição e também sobre o sistema de segregação racial nos EUA em: http://mundoeducacao.bol.uol.com.br/historia-america/segregacao-racial-nos-estados-unidos.htm.

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