Análise da Redação do Vestibular Unicamp 2019 (Texto 1)

Do último domingo (13/01/2019) até a última terça-feira (15/01/2019) foi realizada a segunda fase do vestibular 2019 da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), cuja prova de redação, desde 2010, é diferente da grande maioria das provas de redação dos demais vestibulares, já que exige que os candidatos produzam dois textos de gêneros diferentes, obrigatoriamente. Isso quer dizer que os participantes devem administrar o tempo de quatro horas para responder seis questões discursivas de Língua Portuguesa e literaturas de Língua Portuguesa e escrever as duas redações no primeiro dia da segunda fase.

Neste ano, os candidatos tiveram de produzir um abaixo-assinado e um post num fórum em um ambiente virtual. No texto hoje, analisamos o abaixo-assinado (texto 1) e na próxima semana analisaremos o post (texto 2).

As propostas de redação da Unicamp convidam os candidatos a brincar de faz de conta, digamos assim, pois elaboraram situações de produção de texto que podem acontecer na vida real da maioria das pessoas. Por este motivo dizemos que os candidatos devem se imaginar na situação proposta (por mais que eles estejam em situação de prova, lidando com tempo, ansiedade, nervosismo etc.) e entrar na brincadeira.

Porém, esta brincadeira é séria e os candidatos devem levá-la muito a sério, tendo em mente que se trata de uma prova de leitura e escrita, já que terão de escrever o gênero requisitado articulando a interlocução (quem escreve e para quem escreve, isto é, enunciador e interlocutor) e o propósito (com qual finalidade, objetivo e propósito este texto deve ser escrito).

Vejamos, primeiramente, a situação de produção proposta pelo texto 1 do vestibular 2019 da Unicamp:

Num primeiro olhar, muitos candidatos devem ter assustado com o tamanho e com a quantidade de textos fontes da proposta número 1, mas depois de passado o susto, é melhor pensar que a banca elaboradora, com tantos textos, deu mais chances aos candidatos para escreverem seus argumentos.

A situação de produção é situada em uma escola estadual, cenário fácil de se imaginar, já que grande parte dos candidatos de vestibulares como o da Unicamp são formandos do Ensino Médio. E era como um aluno deste segmento que os candidatos deveriam se imaginar, ou seja, eles mesmos! Até aqui, tranquilo. Porém, nesta escola pública estadual, uma professora de Filosofia recebeu ameaças e ofensas anônimas por uma suposta tentativa de doutrinação política – assunto muito debatido nos últimos tempos por pessoas favoráveis e contrárias ao projeto Escola sem Partido, pela sociedade e mídia em geral).

Tais ofensas e ameaças começaram quando a professora começou a dar aulas sobre a origem da cidadania e dos Direitos Humanos modernos, amparada no texto de Teócrito de Corinto, filósofo grego do século II d. C, sobre o qual falaremos a seguir, já que ele é um dos textos fontes da proposta.

Apesar das ofensas e ameaças anônimas recebidas pela professora, a direção da escola não se manifestou e, por isso, o candidato, aluno do Ensino Médio desta escola, resolve escrever um texto de um abaixo-assinado, em nome dos estudantes, encaminhado à direção da escola, com o propósito de reivindicar (exigir) que a direção da escola se manifeste publicamente em defesa da professora, reivindicar também a manutenção (continuação) das aulas de Filosofia acerca dos Direitos Humanos, justificando as duas reivindicações.

Nenhum texto, seja ele qual for, nasce do nada; todos nascem de uma motivação e a motivação que originou este abaixo-assinado foi a indignação sentida pelo aluno pelo fato de a professora ter sido ameaçada de censura e ter sido ofendida.

Resumindo, o que os candidatos da Unicamp 2019 tinham de entender:

  • Gênero: texto de abaixo-assinado, isto é, o texto que explica e justifica os motivos pelos quais o abaixo-assinado foi criado e o que se pretende com esta manifestação;
  • Enunciador: um aluno do Ensino Médio, em nome dos demais estudantes;
  • Interlocutor: a direção de uma escola pública estadual (possivelmente a banca aceitará os textos que constarem um nome – fictício ou real – de uma escola); a diretora ou o diretor de uma escola pública estadual;
  • Propósito:
    1. reivindicar uma manifestação pública, da direção da escola, em defesa da professora de Filosofia;
    2. reivindicar a continuação das aulas de Filosofia que abordem os Direitos Humanos;
    3. a justificativa de ambas reivindicações.

Tudo isso levando em consideração os textos fontes da coletânea que, por sua vez, podem ser citados e referenciados no texto do abaixo-assinado, diferentemente do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio).

Antes de analisarmos os textos fontes, queremos ressaltar o verbo reivindicar. Há alguns sinônimos para ele, mas, neste caso, o melhor é exigir. Portanto, os candidatos deveriam escrever usando um tom de exigência, exigindo de maneira assertiva uma posição da direção escolar em favor da professora.

O texto fonte no qual a suposta aula foi sustentada é do século II d.C. e nele o filósofo Teócrito defende o livre pensamento, pois este é inerente à espécie humana (assim como Descartes colocou “Penso, logo existo” em 1637 em seu livro Discurso do Método).

Para Teócrito de Corinto, o maior crime que pode ser cometido a uma pessoa é a tentativa de frear seu livre pensamento, colocando em risco, inclusive, a administração da cidade e da sociedade, pois, segundo ele, caso os homens se deixem não pensar, um tirano feroz pode assumir o poder, levando à fome, à crueldade, à opressão (tortura e morte).

Como a aula era sobre a origem da cidadania e os Direitos Humanos, os candidatos tinham se entender que, para o filósofo, ser cidadão é pensar livremente, sem censura e, assim, exercer este direito fundamental. O individuo cerceado de seu próprio pensamento não é cidadão de fato.

O texto fonte número 1 propriamente dito é o artigo XXVI da Declaração Universal dos Direitos Humanos acerca da instrução (educação) que, segundo o documento, deve promover as liberdades individuais (sermos quem somos e quem queremos ser) e o respeito aos Direitos Humanos por meio da tolerância, das amizades e da compreensão entre todas as pessoas dos mais diferentes grupos étnicos, religiosos, sociais etc. a fim de manter a paz.

Como a situação de produção está contextualizada em uma escola e tem como protagonista uma professora de Filosofia, o texto número 1 nos lembra que a escola, por meio da educação, deve promover os Direitos Humanos entre seus personagens (professores, alunos, pais, funcionários etc.), inclusive por meio da tolerância e da compreensão entre pessoas que pensam diferente.

Será que as ameaças e ofensas sofridas pela docente visavam o debate de ideias distintas ou visavam o medo por meio do silêncio da professora? Se alguns alunos não concordaram com as afirmações feitas em sala de aula, por que não debater o assunto ao invés de, anonimamente, ameaçar a professora?

O segundo texto fonte é um tirinha do Armandinho, do cartunista catarinense Alexandre Beck que, aliás, vem sofrendo ameaças e tentativas de censuras por conta de seus posicionamentos em suas tirinhas. A tira em questão, inclusive, coloca o que muitas pessoas têm afirmado com palavras, ações e intimidações: o professor como inimigo do Estado, do país, pois ensinam as crianças e os jovens a pensar, dialogando diretamente com o texto do filósofo da Antiguidade.

O texto fonte número 3 retoma o trabalho de Hannah Arendt, filosofa alemã de origem judia que pesquisou e estudou regimes totalitários como o Nazismo e o Stalinismo. Este texto também dialoga diretamente com o texto de Teócrito de Corinto, pois afirma que regimes totalitários violam os Direitos Humanos e ainda persistem no mundo contemporâneo, ameaçando toda a população com guerras nucleares, terrorismo e intolerância. Ou seja, desde a Antiguidade a tirania ronda as sociedades e os povos de todo o mundo e um dos modos de combatê-la é o livre pensamento.

O quarto e último texto fonte é do jornalista brasileiro Leonardo Sakamoto. Com certa ironia, Sakamoto disserta sobre a polêmica que envolve a educação brasileira há algum tempo: uma suposta doutrinação político-ideológica por parte dos professores que coloca, inclusive, Paulo Freire, um dos maiores estudiosos educacionais do Brasil, reconhecido internacionalmente, como um verdadeiro “pai” desta suposta doutrinação. O jornalista afirma que tal movimento vai contra ao que se faz nos países com os melhores índices educacionais do mundo, como Finlândia e Nova Zelândia, por exemplo.

Portanto, os candidatos deveriam, primeiramente, explicitar a motivação que os levou a escrever o texto do abaixo-assinado, relatando o que houve com a professora de Filosofia e explicando que a direção da escola se omitiu e então reivindicar uma posição pública da direção, a favor da professora e a manutenção das aulas de Filosofia, justiçando-as com os argumentos fornecidos pelos textos fonte.

Na próxima semana, analisaremos a proposta número dois do vestibular 2019 da Unicamp. Até lá!

 


*CAMILA DALLA POZZA PEREIRA é graduada em Letras/Português e mestra em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Atualmente trabalha na área da Educação exercendo funções relacionadas ao ensino de Língua Portuguesa, Literatura e Redação. Foi corretora de redação em importantes universidades públicas e do Curso Online do infoEnem. Além disso, também participou de avaliações e produções de vários materiais didáticos, inclusive prestando serviço ao Ministério da Educação (MEC).

 
**Camila é colunista semanal sobre redação do nosso portal. Seus textos são publicados todas as quintas!

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