Análise da Redação do Vestibular UnB 2018

No último fim de semana foi realizado o vestibular 2018 da Universidade de Brasília (UnB), cuja prova de redação teve como tema “A pressa nossa de cada dia: o tempo na contemporaneidade“. Os candidatos tiveram como tarefa a escrita de um texto expositivo-argumentativo na modalidade padrão da língua escrita e, por esse motivo, analisamos esta prova na coluna desta quinta-feira.

A coletânea de texto desta prova de redação contém cinco textos, sendo dois deles em linguagem não-verbal, já que um deles é uma foto de Maurício Ricardo Chiminazzo e o outro é uma ilustração de Elena Ferrándiz; cada um acompanha, digamos assim, um texto verbal da coletânea e todos serão dispostos juntos logo abaixo.

O primeiro texto da coletânea textual é um fragmento adaptado do livro Os grandes escritos anarquistas, de George Woodcock, sobre a ditadura do relógio. Leia abaixo:

Não há nada que diferencie tanto a sociedade ocidental de nossos dias das sociedades mais antigas da Europa e do Oriente do que o conceito de tempo. Tanto para os antigos gregos e chineses quanto para os nômades árabes ou para o peão mexicano de hoje, o tempo é representado pelos processos cíclicos da natureza, pela sucessão dos dias e das noites, pela passagem das estações. Os nômades e os fazendeiros costumavam medir – e ainda hoje o fazem – seu dia do amanhecer até o crepúsculo e os anos em termos de tempo de plantar e de colher, das folhas que caem e do gelo derretendo nos lagos e rios. O homem do campo trabalhava em harmonia com os elementos, como um artesão, durante tanto tempo quanto julgasse necessário. O homem ocidental civilizado, entretanto, vive num mundo que gira de acordo com os símbolos mecânicos e matemáticos das horas marcadas pelo relógio. É ele que vai determinar seus movimentos e dificultar suas ações. O relógio transformou o tempo, transformando-o de um processo natural em uma mercadoria que pode ser comprada, vendida e medida como um sabonete ou um punhado de passas de uvas. Se não houvesse um meio para marcar as horas com exatidão, o capitalismo industrial nunca poderia ter se desenvolvido, nem teria continuado a explorar os trabalhadores. O relógio representa um elemento de ditadura mecânica na vida do homem moderno, mais poderoso do que qualquer outro explorador isolado ou do que qualquer outra máquina.

O homem que não conseguir ajustar-se deve enfrentar a desaprovação da sociedade e a ruína econômica – a menos que abandone tudo, passando a ser um dissidente para o qual o tempo deixa de ser importante. O operário transforma-se em um especialista em “olhar o relógio”, preocupado apenas em saber quando poderá escapar para gozar as escassas e monótonas formas de lazer que a sociedade industrial lhe proporciona; para “matar o tempo”, programará tantas atividades mecânicas com tempo marcado – como ir ao cinema, ouvir rádio e ler jornais – quanto permitir o seu salário e o seu cansaço. Agora são os movimentos do relógio que vão determinar o ritmo da vida do ser humano.

O texto começa comentando as diferentes formas de se medir o tempo ao redor do mundo e de acordo com os costumes e tradições dos povos, levando em conta suas atividades agrícolas e culturais e como isso foi mudando com o passar do tempo propriamente dito. Hoje não vemos nem medimos o tempo como os povos antigos, tanto da Europa quanto do Oriente, faziam; o autor afirma que vivemos, atualmente, em função do relógio e que é por isso, inclusive, que o capitalismo industrial encontrou um terreno fértil para se expandir.

O que Woodcock denomina de “ditadura do relógio” não controla, apenas, as relações de trabalho e a produção industrial, mas também, segundo sua visão, controla o nosso lazer, o nosso “tempo livre” ou as nossas “horas vagas” (onde está o ócio, inclusive o criativo, lhes pergunto).

Vindo de um autor cuja principal obra é uma grande sinopse do anarquismo, não poderia ser diferente e este é um ponto crucial para a escrita deste texto expositivo-argumentativo, já que o anarquismo é uma teoria social e um movimento político que surgiu no século XIX e que sustenta a ideia de uma sociedade que exista independentemente de um Estado, que é, por sua vez, considerado nocivo e dispensável; nesse sentido, os anarquistas combatem o poder vigente, a ordem social estabelecida e os costumes reinantes.

O candidato que estabeleceu esta relação entre anarquismo, capitalismo industrial, tempo e “ditadura do relógio” (ordem social e um costume reinante) provavelmente escreveu um texto acima da média, pois estabeleceu uma relação entre o que teorias sociais distintas “pensam” sobre o mesmo tema: o tempo na contemporaneidade. Obviamente que, para tanto, o candidato precisa ter também um conhecimento prévio sobre anarquismo e capitalismo.

Deste modo, o que parecia, num primeiro momento, ser um tema de prova de redação filosófico torna-se um tema social e político.

O segundo texto da coletânea é um poema de Alberto Caeiro, alter ego do poeta português Fernando Pessoa, acompanhado da foto de Maurício Ricardo Chiminazzo. Veja abaixo:

Vive, dizes, no presente,
Vive só no presente.
Mas eu não quero o presente, quero a realidade;
Quero as cousas que existem, não o tempo que as mede.
O que é o presente?
É uma cousa relativa ao passado e ao futuro.
É uma cousa que existe em virtude de outras cousas existirem.
Eu quero só a realidade, as cousas sem presente.
Não quero incluir o tempo no meu esquema.
Não quero pensar nas cousas como presentes; quero pensar nelas como cousas.
Não quero separá-las de si-próprias, tratando-as por presentes. (…)

(CAEIRO, Alberto. In: Poemas Inconjuntos. Disponível em: www.dominiopublico.gov.br)

Disponível em http://www.gilsoncamargo.com.br/blog/somos-livres-fotografias-mauricio-chiminazzo/. Acesso em 07/06/2018

A foto de Maurício Ricardo Chiminazzo faz parte de uma exposição do fotógrafo intitulada “Somos Livres?” que questiona se realmente somos indivíduos livres e não presos ao tempo, por exemplo. Em paralelo, o poema de Alberto Caeiro questiona o que seria viver só no presente, a medida do tempo, o passado e o futuro etc.

Já o quarto texto da coletânea textual é um trecho sobre o que Norbert Elias (sociólogo alemão, judeu) afirmou sobre o aprendizado das crianças sobre o tempo:

Norbert Elias afirma que são necessários vários anos para aprender o que o tempo realmente é. Crianças levam nove anos para aprender a compreender os complicados mecanismos de representação do tempo, os relógios. Para o autor, é interessante, ainda, como, uma vez que o processo termina, as pessoas tendem a esquecer-se de como foi complexo entender o mecanismo do “tempo”.

(In: Kant e-Prints. Campinas, Série 2, v. 4, n. 1, p. 109-119, jan. – jun./2009. Traduzido e adaptado.)

Ilustração de Elena Ferrándiz

A ilustração de Elena Ferrándiz combina muito bem com o texto sobre Norbert Elias, pois ambos abordam como aprisionamos a infância e as crianças na ditadura do relógio exposta pelo primeiro texto da coletânea textual. Norbert Elias afirmava que a criança leva nove anos para aprender os mecanismos de representação do tempo para, no fim, ficar presa nele, como a ilustração mostra: uma menina presa numa ampulheta, um dos primeiro meios de medir o tempo.

Desta forma, todos os textos da proposta de redação estão relacionados a fim de questionar a nossa pressa de cada dia que começa na infância e só acaba na morte. Isso também contribui para a nítida e constante sensação de que, a cada dia que passa, os dias passam mais rápido e que tudo parece mais líquido, como dizia Zygmunt Bauman, sociólogo e filósofo polonês.

Além disso, quais seriam as possíveis consequências desta nossa rápida relação com o tempo na atualidade?

Todos estes aspectos poderiam ser abordados pelos candidatos ao vestibular 2018 na UNB. Para quem quiser acessar a prova do primeiro dia, basta clicar aqui.

 


*CAMILA DALLA POZZA PEREIRA é graduada em Letras/Português e mestra em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Atualmente trabalha na área da Educação exercendo funções relacionadas ao ensino de Língua Portuguesa, Literatura e Redação. Foi corretora de redação em importantes universidades públicas e do Curso Online do infoEnem. Além disso, também participou de avaliações e produções de vários materiais didáticos, inclusive prestando serviço ao Ministério da Educação (MEC).

 
**Camila é colunista semanal sobre redação do nosso portal. Seus textos são publicados todas as quintas!

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